domingo, 29 de setembro de 2013

AUDÁLIO DANTAS NA REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA

Entrevista

Uma voz contra as ditaduras da alma

O jornalista Audálio Dantas fala sobre a técnica da biografia

Por Luiz Costa Pereira Junior



Audálio Dantas viu por 30 anos a história ser escrita pela metade. Jornalista admirado por gerações, líder sindical no auge do autoritarismo militar, organizou a primeira e marcante reação da sociedade ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog pelos militares, em 1975, um dos momentos mais lembrados da resistência organizada ao período de exceção que se instalou no país entre 1964 e 84.

Desde então, Audálio viu historiadores atropelarem dados, políticos assumirem ar de mártires e algozes saírem impunes. A ideia de investigar a história passou a martelá-lo e também o repeliu.

Temia distorcer os fatos por tê-los vivido. A editora Civilização Brasileira mostra agora que, felizmente, Audálio mudou de ideia. O cinematográfico As Duas Guerras de Vlado Herzog é o retrato de um homem digno de nota maior que a de ter sido morto sob tortura. A biografia traz relatos singulares, da exasperante fuga dos nazistas à reconstituição vívida da resistência ao regime militar.

Audálio nasceu em 1932, em Tanque d''Arca (AL), cidade da qual saiu duas vezes, a última em 1944, aos 13 anos, numa travessia que começou a pé, continuou por trem, prolongou-se por rio, pelo São Francisco, até pegar o rumo do Sudeste. Em 1954 estreou no jornal Folha de S.Paulo. Nos anos 60, fez reportagens de temas sociais na revista O Cruzeiro, foi redator-chefe da Quatro Rodas e ganhou fama na lendária Realidade.

Com duas décadas de profissão, deixou tudo de lado em 1975, para virar presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. A decisão foi um divisor em sua vida. No 5o mês de mandato, seria lançado aos leões com o caso Herzog.

Após a atuação sindical, e sem retorno possível às redações, Audálio se aventurou na política. Foi deputado federal (1979-83) e executivo de empresas públicas (até 1986) antes de voltar-se aos projetos culturais e jornalísticos que tanto estima. Lançou livros sobre reportagens, quatro infantojuvenis e obras exploratórias, como O Chão de Graciliano (prêmio APCA 2007).

Atual diretor de redação da revista Negócios da Comunicação, da editora Segmento, Audálio é um cultor do humanismo solidário e da força das palavras. E explica sua técnica de escrita biográfica como quem acha que narrar é só outra forma de dizer que é preciso resistir à brutalidade.

Por que biografar Herzog?Primeiro porque, tendo sido um caso emblemático no período da ditadura, ele se tornou referência em qualquer texto que se produza sobre a época. Segundo, tendo sido um personagem do episódio, vi que muita coisa se escreveu pela metade, com informações até incorretas. A ideia me ocorreu desde que propusemos ao cardeal D. Evaristo Arns fazer um culto ecumênico após o sepultamento do Vlado. Ele topou e tornamos aquela missa uma reunião de vozes contra a ditadura, que marcou o período.

Esta biografia é a sua desforra contra a ditadura?Busquei reconstituir o caso a partir da minha visão. Há trabalhos considerados importantes, até em inglês, que localizam datas erradas e dão informações inverídicas. O culto ecumênico, por exemplo. O ato foi um ponto alto dos protestos, mas há obras de historiadores que garantem ter ele sido feito pela Associação Brasileira de Imprensa, cuja sede é no Rio de Janeiro, quando foi em São Paulo, encabeçado pelo Sindicato dos Jornalistas.

Ora o texto foca o biografado, ora o contexto da época. Só uma técnica ou "a" técnica de biografias?É antes a técnica jornalística de não só expor o fato, mas saber que, se a gente quer ter informação ampla sobre algo, deve dar o contexto. Fiz um plano de estrutura do livro levando em consideração que só contar o fato, a prisão e morte de Herzog, seria a mera repetição de várias narrativas de violência do regime. Era preciso saber por que ocorreu, o porquê da reação, e o foco se ampliou.

O que define o bom texto de não ficção?Primeiro, o cuidado com a pesquisa e a informação, mesmo a insignificante. Fazer averiguação com muitas fontes para estabelecer cada fato. Segundo, a maneira de narrar. Não o simples contar, mas o modo de usar os fatos numa montagem. O texto linear, obediente à cronologia, é mero relatório sem atrativos.

Como planeja a escrita de uma biografia?Nem sou o mais indicado a responder, pois tenho o mau hábito de fazer o texto definitivo só quando tenho todas as informações à mão. Liguei os fatos não só juntando-os em sequência, mas inserindo contextos, com idas e vindas, sem abandonar o fio condutor. Para mim, foi o melhor planejamento.

O que mais o surpreendeu em Herzog?A sensibilidade dele. Um episódio que ajuda a defini-lo se passou no sítio que ele tinha em sociedade com o sogro. Uma noite, Vlado ouviu um bicho. Pelos guinchos, percebeu que sofria. Começou a procurar, até achá-lo numa armadilha. Como não conseguia soltá-lo, acordou o sogro para ajudá-lo. Esse tipo de preocupação com o outro era marca dele. Há outra cena, muito singela e marcante. Sua sogra, mãe da Clarice, foi visitá-lo em 1967 quando o casal estava em Londres. Era Sexta-feira Santa, ele ia fazer compras quando lhe ocorreu perguntar a ela se queria ir a uma missa católica. Ele era judeu, seria compreensível esquivar-se de fazer o convite. Mas ficou ao lado dela por todo o culto, ela de joelhos, ele em silêncio respeitoso, numa delicadeza própria de pessoas com sensibilidade.

Você o conheceu?Em encontros eventuais, apenas. Como jornalista, fui entrevistado por ele, para a TV Cultura [estatal de SP]. Sabia que era um intelectual preocupado com a cultura. Em 1974, eu li uma reportagem que ele fizera, com Zuenir Ventura, para a revista Visão. Tratava do vazio cultural do país. Dez anos de ditadura e os dois situavam a censura no panorama cultural. Era uma ousadia. Vi logo que aquele nome era o de alguém com coragem. A minha surpresa foi descobrir que o sujeito que fizera aquele texto ousado era tímido, introspectivo, dava às pessoas a impressão de ser um permanente fugitivo. O episódio se tornou ainda mais esclarecedor depois que comecei a pesquisa para a biografia.

Por quê?É que ele continuava sendo um fugitivo. Fui buscar a origem desse traço e a encontrei na ida dele com a família, da Iugoslávia para a Itália, tentando escapar do nazismo. A sensação de fuga, incerteza e perigo o perseguiu até o fim. Ele não era impetuoso, temia por si e pela família, mas todo perseguido sabe que o silêncio e a omissão são ameaças muito maiores ao ser humano.

Por que o caso dele ganhou tanta repercussão?A repercussão não ocorreu porque ele era um jornalista importante, o que teoricamente garantiria espaço na mídia. Vinte e um jornalistas, antes dele, foram mortos pelo regime. Em São Paulo, 12 jornalistas foram presos só em 1975. Ele foi apenas um deles. Mas o sindicato tornara-se uma trincheira contra a ditadura. Nossa posição era de denúncia e começara bem antes de ele ser pego. Sua prisão em outubro de 1975 veio na esteira de uma caçada contra o partido comunista. Foi um momento de exacerbação dos militares da ultradireita. Nenhum dos sequestrados poderia ser considerado ativista clandestino. Eram trabalhadores com endereço fixo, vida pública conhecida, sabidamente filiados ao PCB. O que fez a diferença na morte dele é que nenhuma outra reação foi tão clara como a do Sindicato dos Jornalistas, já no dia seguinte ao assassinato. Jornais publicaram nosso comunicado, organizamos o culto ecumênico, o silêncio fora rompido.

A pesquisa mudou alguma opinião sua sobre o período? Em alguns casos, sim. A começar da imagem que eu tinha dos próprios integrantes da diretoria sindical. Nas homenagens que faço no livro incluo todos os diretores, mas três em especial, os mais atuantes. Pois constatei algo de que não me tocara na época: muitos se omitiram. Não dava pra perceber tudo ao redor, pois as coisas ocorriam muito rápido. Uma surpresa foi com a figura do Paulo Egydio, o governador de São Paulo na época. Pelas informações do período, ele se empenhara contra a ditadura. Depois descobri que ele foi só dúbio. Fazia, entre as paredes do palácio, discurso indignado e, depois, se abaixava para o general do momento.

Qual o maior esforço que fez para apurar a história?O maior foi vencer a resistência em escrever a história. Só em 2005 tomei a decisão. Pensava se não cometeria erros de informação ao me conduzir pela emoção de ter vivido os fatos. O caso do Vlado estava na minha alma. Toda vez que lembro é com raiva ou sensação de que tudo pode voltar a ocorrer.

A pesquisa foi difícil?Uma vez, procurei o Arquivo Nacional, pois os arquivos do SNI, a central de inteligência da ditadura, haviam sido abertos. Senti na pele que o país continua refém dos princípios não democráticos. Puseram mil e uma dificuldades para o acesso aos documentos, exigiram até o atestado de óbito do Vlado, aquela falsificação finalmente corrigida agora. A burocracia continua a favor do sistema autoritário. Um abuso.

O que acha da Comissão da Verdade?Ao criar a comissão, a presidenta Dilma redimiu os governos anteriores, inclusive o de Lula. Eles não tiveram coragem de enfrentar a questão. No fundo, há medo da reação dos militares que estão por aí. A comissão veio tarde, mas é bem-vinda. No mínimo, possibilita um debate que estava esquecido. E pode contribuir com a revelação de aspectos históricos esquecidos.

Não houve situação em que, por falta de dados, empacou a narrativa? Várias vezes. O grave é que não consegui contornar. Checava cada fato em várias fontes, atas sindicais, documentos, testemunhos oculares, bibliografia. Mas nas entrevistas sempre havia alguma contradição sobre o mesmo incidente. Por todo o tempo, nomes me martelaram a cabeça, gente que eu não encontrava ou não conseguia comprovar existência. Podia, então, esquecer o nome ou simplesmente generalizar o episódio. Mas não desisti. Havia, por exemplo, um setorista do II Exército, repórter da TV Globo, que foi o primeiro a dar a informação de que Vlado morrera. Nos registros disponíveis só constava o sobrenome do repórter. Fiquei empacado por anos. Quando o encontrei, ele por fim se recusou a conversar, pois tinha medo. Veja bem. Eu o havia localizado décadas depois de o regime ter passado. Para mim, isso sinaliza o império de violência da ditadura, que ecoa até hoje.

Se um texto é fruto da seleção de fatos, como confiar nele?Nossa obrigação é verificar cada um. A seleção deve dar ideia do todo, conectada à rede dos fatos comprovados por mais de uma fonte. Desprezei relatos por não terem lastro. Não queria formar um painel desordenado, sem sentido.

Nossa língua favorece ou dificulta a capacidade narrativa?O português tem elementos que ajudam a criação de um texto. A sonoridade, por exemplo. A frase tem de ser sonora. O assunto jorra e, de repente, parece que a gente escreveu música. Essa qualidade da língua pode fazer a gente empacar numa frase. Volto duas ou três vezes à mesma sentença, para procurar o ritmo adequado. Uma palavra que falte, sou incapaz de deixar o espaço em branco. Acham que é preciosismo bobo, mas é uma qualidade da língua.

A imprensa perde leitura, não só por causa da TV e da internet. Falta credibilidade?Falta de credibilidade é o mais grave que pode ocorrer a quem só tem importância por causa dela. Ela resulta de apuração e transmissão confiável. Nem sempre a omissão de informações resulta da falta delas.

A imprensa apoiou o regime e omitiu informações não só porque era censurada, mas por conveniência. A maioria dos veículos e editoras reagiu mal às novas tecnologias. Primeiro, copiando o formato da internet, em vez de aprofundar a apuração das informações. Faltam textos de análise sustentados por sólida informação, que não sejam a opinião instantânea da internet. Como oferece pouco disso, a imprensa perdeu o bonde, pois portais de notícia concorrem com grandes veículos, cuja única reação é reduzir o quadro de jornalistas, limando sua capacidade de agir.

Sendo autodidata, o que o ajudou a ser o escritor que é?Ler com prazer, não por obrigação. Como fui para o jornalismo aos 21 anos, tinha como referência o texto enxuto do Graciliano Ramos, a identificação com a temática dele. Ele era autodidata. Leu Cervantes e Dostoievski aos 12 anos. Antes, lia dicionários na loja do pai em Viçosa (AL). Construiu Vidas Secas com textos estanques como crônicas. Um crítico definiu o livro como uma exposição de quadros, cada um diferente do outro, mas no conjunto formando uma coisa só. Isso define o que deve buscar um jornalista, um escritor. Não só na escrita, mas no tema, no modo como apresenta a história, no fazê-lo com as palavras certas. Pois deve ser guiado por um cenário geral do universo humano, que gostaria de demonstrar. Cada texto é um quadro dessa exposição, o ponto de parada numa viagem. Em começo de viagem, procuro essa revelação nas paisagens, para apurar o sentido da viagem inteira.

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