ARTIGOS

Do "Observatório de Imprensa", transcrevo importante trabalho do jornalista Hamilton Octávio de Souza, que interessa a todos que atuam no Jornalismo ou que apenas procuram nos jornais suas fontes de informação. 
Sempre que encontrarem um texto do Hamilton, leiam com atenção, pois estarão ganhando algo substancial.




PERSEU ABRAMO (1929-1996)As lições de um mestre (*)
Hamilton Octavio Souza (**)

Prefácio de Padrões de manipulação na grande imprensa, de Perseu Abramo (posfácio de Aloysio Biondi), 64 pp., Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2003; e-mail: , URL ; tel. (11) 5571-4299.Perseu Abramo trabalhou 15 anos como professor do curso de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), de 1981 até sua morte, em 1996. Trouxe para a PUC-SP a sua experiência acadêmica da Universidade de Brasília e da Universidade Federal da Bahia, e sua experiência jornalística das redações de O Estado de S. PauloFolha de S.Paulo e da imprensa alternativa (Movimento) e partidária (Jornal dos Trabalhadores, do Partido dos Trabalhadores – PT).
Além da atividade docente intensa em várias disciplinas específicas – desde Introdução ao Jornalismo, no 1º ano, até Projetos Experimentais, no 4º ano –, o professor Perseu Abramo orientou inúmeros projetos de iniciação científica e a produção de jornais laboratórios. Desenvolveu, mas não chegou a concluir, por motivos alheios à sua vontade, uma pesquisa sobre a manipulação da informação e a distorção da realidade na imprensa brasileira, que resultou em textos e relatórios preliminares de excelente conteúdo, irrefutáveis nos chamados critérios científicos e de profunda atualidade até hoje.
Essa pesquisa só não foi concluída porque a universidade, entre 1991 e 1992, viveu grave crise financeira e cortou inúmeros projetos em andamento sem verificar seu mérito. Parte da remuneração do professor Perseu vinha dessa verba, e ele foi obrigado a deixar o trabalho "suspenso" para se dedicar exclusivamente às aulas, após ter deixado a Secretaria de Comunicação da administração municipal de Luiza Erundina.
Assim mesmo, os relatórios da pesquisa e os textos derivados dela deixados por Perseu Abramo, praticamente inéditos, formam um conjunto de observações, constatações e análises do comportamento da imprensa comercial-burguesa, especialmente dos grandes jornais de São Paulo, raramente desvendados por outros pesquisadores.
Formado em sociologia, Perseu Abramo conhecia perfeitamente as técnicas da pesquisa científica, as metodologias e a organização do material coletado conforme os costumes da academia. Além disso, sabia perfeitamente o que muito jornalista e professor de jornalismo não sabe ainda hoje: que a atividade só pode ser entendida e analisada como categoria política, como instrumento de propagação ideológica de grupos, setores e classes sociais.
Tanto é que o texto mais completo sobre essa pesquisa recebeu originalmente, entre outros, os títulos de "Imprensa e política" ou "Significado político da manipulação na grande imprensa". E nele são explicitados não apenas os padrões da manipulação da informação como também as justificativas políticas da distorção e a pretensão de algumas empresas jornalísticas de se organizar e tentar assumir o papel de partido político.
Discurso oficialA comparação que faz entre partido político e organização empresarial do jornalismo é antológica. Vale lembrar que o jornalista Perseu Abramo tinha participado ativamente da greve da categoria, em 1979, quando era editor da Folha, foi demitido pelo jornal (juntamente com centenas de profissionais castigados pelo patronato) e acompanhou – criticamente – o nascimento e a implantação do Projeto Folha, que transformou o antigo jornal da família Frias numa espécie de seita dirigida por manuais e "decretos" de revelação dogmática.
Os estudos do professor Perseu desmascaram a autoproclamada "objetividade" da imprensa comercial-burguesa, mostram que se trata de uma "falsa objetividade" e colocam o jornalismo praticado pelo mercado como um instrumento de controle político das elites, contrário aos interesses maiores do povo brasileiro. No debate sobre a verdadeira motivação da empresa de comunicação em manipular a informação e distorcer a realidade, Perseu coloca o campo econômico, a busca do lucro, num segundo plano, já que esse pode ser obtido com melhor resultado em outras atividades empresariais. Para ele, a motivação real está no campo político, na lógica do poder.
Os padrões de manipulação observados, identificados e classificados por Perseu Abramo podem ser aplicados de forma integral na análise dos veículos atualmente, inclusive porque as distorções que ele denuncia assumiram com muito mais desenvoltura o domínio das redações – após mais de dez anos de adesão da imprensa brasileira aos valores do neoliberalismo e à participação da mídia no exercício do poder formal das elites dominantes.
Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, a imprensa e os meios de comunicação praticamente substituíram a representação parlamentar, as organizações sociais e as entidades de classe na intermediação com a sociedade. Os veículos foram transformados em reprodutores e retransmissores do discurso oficial e, inclusive, das manipulações forjadas nos palácios de Brasília.
Justamente um dos padrões da manipulação da informação indicado nos textos de final dos anos 80 e início dos anos 90 é o oficialismo, que tem sido uma prática constante na trajetória da imprensa comercial-burguesa no Brasil e que ganhou hegemonia absoluta na segunda metade dos anos 90 – quando a reportagem e o trabalho investigativo foram abandonados e a palavra "positiva" das autoridades abarcou a maioria das grandes redações.
"Truques" da notíciaNa medida em que o oficialismo atinge a grande maioria da atividade jornalística, em que a diversidade e a pluralidade de informações e opiniões deixam de ter o seu espaço na sociedade, ele se transforma em autoritarismo, afirma Perseu em seus textos, com tremenda percepção do que aconteceria nos anos seguintes na imprensa brasileira.
O oficialismo que tomou conta dos meios de comunicação de 1994 para cá reduziu o jornalismo ao procedimento declaratório de um número bem comportado de fontes "oficiais" e previsíveis, todas naturalmente engajadas no projeto entreguista do governo FHC e na economia de mercado, de tal forma que a relação com o autoritarismo não pudesse mais ser ignorada. É claro que o discurso permanente continuou sendo o da liberdade de expressão, o da "isenção" da imprensa e o da "objetividade jornalística", mas sem espaço nem veículos destoando da lógica do pensamento único.
Com base em seus textos, utilizados em sala de aula, palestras, oficinas, seminários, com estudantes de graduação, ensino médio e com militantes de movimentos sociais interessados na área da comunicação, tem sido possível compreender alguns dos mecanismos empregados por jornalistas e comunicadores em geral nos veículos e programas identificados e reconhecidos como predominantemente dedicados ao jornalismo.
Essa é uma questão primordial: a manipulação não reflete a realidade da sociedade brasileira, está estruturada no modo de produção do jornalismo e é exercida por profissionais egressos das universidades, muitos dos quais com perfeito domínio das técnicas de comunicação e dos "macetes" adotados pelos jornalistas tanto para ocultar, fragmentar ou inverter os fatos.
Nada mais atual do que a ocultação total, parcial ou de aspectos da realidade; a fragmentação nas edições; a inversão da relevância das informações ou a mais primitiva descontextualização dos acontecimentos – práticas observadas hoje em cada página do jornal diário, da revista semanal e nos noticiários das emissoras de rádio e de TV.
O estudo desses padrões descritos por Perseu Abramo fornece ao jornalista e ao cidadão um instrumental precioso para a leitura correta e precisa do jornalismo praticado pela imprensa comercial-burguesa. Fornece, principalmente aos professores de todas as áreas e cursos, elementos valiosos para o entendimento sobre o papel da mídia numa sociedade capitalista, de massas, sobre os "truques" contidos em cada notícia e sobre a necessária atenção que os pesquisadores devem ter ao utilizar o material jornalístico como fonte de suas pesquisas.
Novo jornalismoNa parte em que trata da inversão da forma pelo conteúdo, um dos pontos do padrão da inversão, Perseu Abramo sintetiza em poucas palavras, numa operação de sintonia fina, toda a dimensão de um problema praticamente escamoteado pelo jornalismo de mercado e deliberadamente ignorado pelas escolas afundadas nas "teorias" que cuidam da aparência, do visual, da imagem e do signo. Ele afirma:

"O texto passa a ser mais importante que o fato que ele reproduz; a palavra, a frase, no lugar da informação; o tempo e o espaço de cada matéria predominando sobre a clareza da explicação; o visual harmônico sobre a veracidade ou a fidelidade; o ficcional espetaculoso sobre a realidade".A riqueza desse pequeno trecho comporta inúmeras análises, debates e reflexões. É possível debater desde o papel e a precisão da linguagem na descrição de um fato até o "jornalismo virtual" praticado em larga escala atualmente – muito mais criação ficcional do que informação relativa a algo real e concreto.
Esse tipo de inversão, que é uma manipulação que distorce a realidade, consome os veículos de comunicação todos os dias, às vezes de maneira sutil, contida, outras vezes de maneira escancarada, grosseira e agressiva.
Utilizei durante anos a edição do jornal O Estado de S. Paulo de 30 de junho de 1998 como exemplo radical desse padrão indicado por Perseu Abramo. Naquele dia, o tradicional jornal paulista, empenhado que estava na reeleição de Fernando Henrique Cardoso, apresentou na capa cinco chamadas (a manchete principal e quatro submanchetes) baseadas em previsões de futuro, em promessas vagas, do tipo "privatização das teles criará 2 milhões de empregos", "governo abrirá financiamento da casa própria", "balança comercial terá superávit" e coisas parecidas.
É claro que as chamadas do jornal jamais se concretizaram na época, no prazo e nas condições apontadas pelas matérias, as quais, na verdade, não guardavam qualquer relação com fatos reais, mas apenas com intenções e declarações de pessoas do governo devidamente comprometidas com a reeleição de FHC.
O que fica patente é que os estudos realizados pelo professor Perseu Abramo continuam fornecendo um instrumental precioso para a compreensão do fazer jornalístico predominante no país, o qual, obviamente, tem a ver com a organização do sistema de comunicação, com o tipo de propriedade e exploração desses meios e com a natureza do sistema capitalista.
A divulgação desses estudos e o seu debate mais amplo na sociedade certamente irão contribuir não apenas para ampliar a visão crítica – necessária – dos esquemas de manipulação da informação e de distorção da realidade, mas fundamentalmente para formar a base da transformação e estimular a formulação de um novo jornalismo – transparente, democrático, participativo e comprometido com os destinos da maioria do povo brasileiro.
(*) Título original: "A atualidade dos estudos do jornalista e professor Perseu Abramo"; intertítulos da redação do OI
(**) Jornalista e professor universitário; foi aluno do professor Perseu Abramo, seu colega de trabalho e companheiro na organização do PT; ocupou a chefia do Departamento de Jornalismo da PUC-SP de 1991 a 1995, no período em que Perseu desenvolveu a pesquisa sobre manipulação e distorção na imprensa; editor da revista Sem Terra, diretor de comunicação da Fundação de Ensino Octávio Bastos (FEOB) e está de novo na chefia do Departamento de Jornalismo da PUC-SP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários são bem-vindos, desde que não contenham expressões ofensivas ou chulas, nem atentem contra as leis vigentes no Brasil sobre a honra e imagem de pessoas e instituições.